Nós naturalmente esperamos que os evangelhos relatem Jesus
como o único na história a mostrar sabedoria, compaixão e virtudes divinas. Aqui ele expõe engano e interesses
próprios. Francamente, Jesus não se
sai bem neste encontro com a mulher Cananéia. Somos
tentados a justificar o comportamento impróprio de Jesus e fingir que não o vimos. Se conseguirmos resistir a essa
tentação de salvar Jesus, e nós, dessa vergonha, podemos descobrir alguns novos
insights na história do Evangelho de Jesus em Mateus.
Em primeiro lugar, Jesus ignora a suplica da mulher Cananéia
por misericórdia por sua filha. Ele
responde a ela, dizendo que as suas necessidades não são preocupações dele. Com
a persistência dela, o insulto torna-se termo depreciativo que exibe velhas hostilidades
para com um dos mais antigos inimigos de Israel. Ele compara a mulher e sua filha, com
os cães implorando por restos da mesa. De
acordo com a versão de Marcos da história, a mulher é identificada como uma
mulher siro-fenícia. O relato de
Mateus apresenta uma mulher Cananéia. A
referência a "cananeu" evoca preconceito nacional profundamente
enraizado.
Alguns comentaristas sugerem que "siro-fenícia"
ou "cananeu" indica apenas que a mulher era uma gentia, e ambas as
descrições evocam antipatia dos judeus para os gentios. Mas esta visão implica que todos os
judeus detestavam e evitavam todo o não judeu. No primeiro século os judeus eram
diferentes em suas atitudes para com os gentios e até interagiam com eles no
tempo de Jesus, bem como quando o Evangelho de Mateus foi escrito no final do
primeiro século. A História do
Evangelho de Mateus tem muitas referências a gentios, algumas positivas e
outras negativas. O escritor do evangelho
mostra atitudes judaicas comuns descrevendo gentios exibindo comportamentos
desprezíveis. Por exemplo, Jesus
diz: "Quando orares, não use de vãs repetições, como os gentios." (6:7). Quando admoestou os discípulos a não
se preocupar com comida, bebida ou roupa, diz: "Pois são os gentios que se
esforçam por todas estas coisas." (6:32).
Mas, na parábola do juízo final, quando todos os gentios são reunidos diante do
Filho do Homem, ele separa as ovelhas dos cabritos. Alguns gentios são "ovelhas"
que herdam o reino e alguns são "bodes" que não herdam (25:31 ss). No final de Mateus, Jesus
ressuscitado envia seus discípulos para irem atrás levantando discípulos entre
os gentios (28:19).
O Termo usual de
Mateus para gentios, às vezes traduzida como "nações" é ethne ou panta
ta ethne. Este é o termo
comum para os gentios, ou não-judeus, na literatura judaica escrita em grego
durante esse período. Ele pode
ter conotações negativas ou positivas, ou até mesmo neutras. A designação "cananeu"
certamente define a mulher como uma gentia, mas não qualquer gentio. O termo transmite profundos
preconceitos históricos que "siro-fenícia" não o faz. A referência é bíblica. Pois não havia cananeus que vivessem
no primeiro século, assim o rótulo não descreve encontros atuais. O rótulo evoca conflitos históricos e,
portanto, define a mulher em termos de preconceitos seculares que o público
judeu do primeiro século entendia. Esta
distinção é importante por duas razões. Primeiro,
ele desafia a suposição cristã comum que os judeus evitavam toda a interação
com os não-judeus. Em segundo
lugar, que dá uma inclinação diferente para as ações de Jesus.
Sabemos que a narrativa do evangelho é sobre Jesus e olhar
dele para o significado desta história. Gostaríamos de estar errado, porém, só se
não prestarmos muita atenção para a mulher nessa história. O modelo do comportamento humano da
mulher Cananéia é mais admirável que o de Jesus. Ela mostra vontade de ser vulnerável,
procurando a ajuda de um inimigo de longa data mesmo sabendo que será desprezada
por causa de divisões nacionais e raciais. Ela
pede ajuda para sua filha, e não para si mesma. Ela é persistente em face aos insultos
e rejeições, pelo amor de sua filha. A
mulher Cananéia tem as melhores respostas da história, especialmente sua última. "Me chame de cachorro", diz
ela, "mas até mesmo os cães recebem as migalhas que caem da mesa." Ela é uma azarona sortuda (trocadilho intencional),
que ganha o prêmio de maior valor para qualquer mãe, judia ou uma desprezada Cananéia
- a saúde e bem-estar de sua filha.
Claro que a história é sobre Jesus. Vemos um Jesus muito humano. Nós nos vemos espelhados na atitude de
Jesus para com a mulher Cananéia, mas não no melhor de nós. Sabemos muito bem a tendência de
definir e temer o "outro" com base na cor da pele, nacionalidade,
classe ou credo são estereótipos profundamente enraizados e que remontam a gerações
ou mesmo séculos. Tememos ser
incomodados pelas preocupações dessas pessoas. Nós temos nossos próprios filhos para
cuidar. Quando eles persistirem, insistindo na igualdade
de tratamento e justiça para seus filhos, recorremos a insultos raciais entre
outros insultos. E nós somos
muito bons em justificar nossas ações, em vez de admitir o preconceito que
ainda persiste.
A história é sobre Jesus e, nele, vemos o melhor do
potencial humano no relacionamento com os outros, mesmo com aqueles que tanto evitamos
e tememos. Vemos em Jesus a
possibilidade de perceber a humanidade comum onde podíamos ver apenas a diferença. E quando nos deparamos com o
"outro" como alguém que partilha a nossa humanidade, nunca mais
poderemos vê-lo como "outro" novamente. A mulher Cananéia tem as melhores
respostas desta história, mas Jesus tem a última palavra: "Mulher, grande
é a tua fé, que seja feito como queres." Não
mais "Cananéia", mas
simplesmente "mulher". Ela
nunca mais será definida pelo preconceito nacional, racial ou religioso
novamente. Ela agora é uma mãe
como qualquer outra que busca desesperadamente ajuda para sua filha. E, pelo amor dessa mãe, Jesus cura a
filha. E, talvez, Jesus nos cure,
também, da tentação de ficarmos com os velhos estereótipos e hábitos que nos
impedem de abraçar a nossa humanidade comum.
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