sexta-feira, 28 de outubro de 2016

TEOLOGIA TRANS PARTE 3 (OUTROS PERSONAGENS TRANS)


OUTRAS (OS) PERSONAGENS TRANS
 
A Transportadora de Jarro do Novo Testamento é certamente o principal modelo bíblico de uma pessoa trans, mas existem outras personagens que também podemos interpretar como pessoas que estão além do binarismo conhecido de gênero.

Um outro exemplo óbvio é o de José, filho de Jacó, de Gênesis 37-45. A Bíblia diz que Jacó amava José acima de qualquer outro de seus filhos e que, quando completou 17 anos, ele lhe fez "uma veste longa com luvas" ou um "casaco de muitas cores", que José parecia usar habitualmente. A expressão hebraica é passim kethoneth, e o outro lugar no Antigo Testamento em que a ela aparece é 2 Samuel 13:18, para descrever a roupa da princesa Tamar, especificando que "assim se vestiam as filhas virgens dos reis". José usava literalmente uma roupa de princesa aos 17 anos, e seu pai o amava do mesmo jeito. Este é o jeito da Bíblia nos ensinar a lidar com crianças que gostam de se vestir de uma maneira não codificada de gênero, mesmo sabendo que isso poderia acarretar desconforto. Amá-las de qualquer maneira. Mas seus irmãos não entendiam assim, e, fingem sua morte e o vendem como escravo. Ele é comprado por uma pessoa descrita como saris, chamado Potifar, treinado para ser um um saris oficial do palácio. José também ficou famoso por rejeitar os avanços sexuais de sua mulher. Na verdade, sua história prossegue e o jovem torna-se um excelente oficial do palácio, executando tudo no Egito para Faraó. O texto não o chama de saris, mas certamente o descreve como um, embora tenha casado e tido filhos. Ele se torna um patriarca masculino bastante convencional, mas nitidamente brincou com o gênero desde o início de sua história e, provavelmente, enquanto trabalhava para Faraó.

Consideremos o caso de Daniel. Ele e seus três companheiros são capturados pelos babilônicos, e, depois treinados por três anos para servirem como funcionários do palácio, por Aspenaz, eunuco chefe do rei. Alguns estudiosos defendem uma relação erótica entre Daniel e Aspenaz, e entre Daniel e o Rei Darius. Várias traduções obscurecem isso, mas Daniel 1:9, faz referência tanto sobre a benevolência (khased), quanto a um sensível amor (rakhamin), no hebraico. Daniel 14:2 (encontrado em Bíblias católicas e em Bíblias judaicas mais antigas, mas deixado de lado nas protestantes), especifica que "Daniel era o companheiro do rei e o mais íntimo de seus amigos". (No aramaico a palavra é Rahme e no grego simbiontes). Não se sabe ao certo se Daniel dormiu ou não com o chefe dos eunucos e mais tarde com o Rei, mas, é certo que ele e seus companheiros foram treinados como sarissim, e como magos encantadores, que, depois de testados e julgados, tornaram-se aqueles que "se apresentam diante do rei". Mas na cultura Mesopotâmia, o conjunto da frase designava aqueles que "não tinham órgão masculino, nem feminino", onde Enki (um dos deuses criadores) foi designado para ser mago que trabalhava para o Rei. Daniel é empurrado para o papel e expectativas culturais de um eunuco babilônico, e, nitidamente rejeita alguns de seus aspectos (comida, religião, etc.), mas aceita outros. Ao contrário de José, que parece estar fora do papel de saris da época, Daniel nunca se casa e nem tem filhos, e na verdade pode muito bem ter servido ao Rei. Da mesma forma Neemias é descrito como "copeiro" do rei Artaxexes I, e parece agir como um saris. Ele aparece diante da rainha sem nenhum problema em Neemias 2:6, e a tradução da septuaginta o descreve explicitamente como eunouchos (em vez de copeiro), apesar de nossas cópias do texto hebraico não o especificar como saris.

A Bíblia não chama especificamente José, Daniel ou Neemias de saris, mas existem várias outras personagens simpáticas que ela chama de eunouchos: Potifar, que compra e treina José (Genesis 1:39), Aspenaz, sábio mestre de Daniel (Daniel 1:1-21), Ebede-Meleque, que resgata Jeremias (Jeremias 38:7-10), e um funcionário etíope sem nome que interage com Filipe (Atos 8:26-39), etc.

Você pode até colocar Adão, Jesus, Eva ou mesmo Deus como pessoas Trans. Andrógino é uma palavra emprestada do grego para o hebraico, e é usada principalmente para argumentos rabínicos sobre Deus sendo de ambos os sexos, feminino e masculino e colocando Adão da mesma forma, antes da fusão de Eva, se tornando masculino depois. Isso faria de Adão uma pessoa Trans. É difícil dizer até que ponto Eva esteve presente como Adão antes de ser formada por Deus em um ser distinto, mas pelo menos me parece possível que Eva também fosse masculino e feminino presente como uma parte de Adão antes de ser formada em um ser distintamente feminino por Deus. Isso provavelmente faria com que ela não fosse apenas uma mulher, mas também uma mulher trans. Pelo menos se imaginarmos essa pequena porção, isso será mais que apenas metáforas e alegorias. Como isso funciona no caso de Deus e Jesus não é nítido, mas fica sensível nos detalhes do relato da trindade e da encarnação. Existe alguma força que nos leva a pensar em Deus como ambos os sexos, masculino e feminino antes de Jesus na encarnação. Quando todos os homens e mulheres são criados à imagem de Deus. Se a segunda pessoa de Deus participou tanto da criação da humanidade e da encarnação como Jesus, então com certeza parece que ele teve que passar por uma transição de gênero de ambos os sexos masculino e feminino, tornando-se apenas o sexo masculino, em algum momento, logo após a criação dos seres humanos, ou durante o processo de encarnação. A não ser, talvez, que Ele fosse um eunuco, o que alguns dos primeiros cristãos acreditavam. No processo de tornar-se humano, Ele provavelmente também se tornou homem. Ele também, parece um homem trans nesta interpretação, e na verdade é muitas vezes comparado a Adão. E para a grande maioria dos cristãos, Ele ainda faz parte da Trindade, e assim, Deus como um todo tem agora uma persona estritamente masculina, assim como o Pai e o Espírito Santo, que são mais polivalentes.

Fonte: Escritos do Rev. Cindi Knox (homem trans).

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DAVI AMAVA JONATAS MAIS DO QUE AS MULHERES

No funeral de Jonatas, Davi declara que o ama mais do que a qualquer mulher. Esta é apenas uma das várias passagens bíblicas que descrevem e celebram um intenso amor entre dois homens que vai além da amizade.

Discussão

O autor de 1 e 2 Samuel é pensado como um membro da corte do Rei Davi. Ele parece saber os detalhes íntimos da vida de Davi, e não faz rodeios ao contar a história de seu reinado e, de seu antecessor, o Rei Saul. Como parte dessa história, o autor fala sobre o filho de Saul, Jonatas e sua relação com Davi.
Você já pode ter ouvido a história de Jonatas e Davi, mas se for como a maioria das pessoas, provavelmente nunca a olhou de perto. Se seu pastor pregou sobre ela, o sermão, possivelmente, falou sobre a "amizade" dos dois. Alguns cristãos apontam para os dois como um exemplo de ligação masculina idealizada, um tipo de "amor fraterno" não "manchado" pelos envolvimentos românticos de relação homem-mulher. O texto bíblico, no entanto, é completamente inconsistente com essa interpretação forçada. Vamos apresentar evidências bíblicas e deixá-lo ser júri. Você decide. Jonatas e Davi foram bons amigos (experimentaram um amor fraternal), ou havia um nível (romântico) mais profundo em seu relacionamento?

 O autor de 1 Samuel fala de um homem chamado Saul, que se torna rei de Israel, pai de um filho chamado Jonatas. Davi, era um pastor de uma tribo menor de Israel, que chama a atenção de Saul e Jonatas quando se oferece para lutar contra um gigante que perturbava sua nação. O texto diz que Davi não tinha medo, pois acreditava que Deus estava ao lado dos israelitas. Em uma demonstração de coragem, ele luta contra o gigante com apenas um estilingue e um punhado de seixos. Milagrosamente, é vitorioso. Saul fica intrigado com este jovem corajoso e o chama para vir falar com ele, que nos leva ao Anexo A. O texto diz:

"Quando Davi acabou de falar com Saul, a alma de Jonatas se ligou a de Davi, e Jonatas o amou como sua própria alma. E Saul naquele dia o tomou, não lhe permitindo voltar para casa de seu pai. E Jonatas fez uma aliança com Davi, porque o amava como sua própria alma. E Jonatas se despojou da capa que usava, e deu-a a Davi, como também suas vestes, e até mesmo sua espada, seu arco e seu cinto". (1 Samuel 18:1-4)

Agora, imagine se esta história fosse sobre Jonatas e uma mulher. Suponha que o autor houvesse escrito que "a alma de Jonatas se ligou a de Mirian, e Jonatas a amou como sua própria alma". E suponha que após a reunião, Jonatas entregasse imediatamente tudo o que lhe era mais precioso a Mirian. (A armadura e suas armas de príncipe, que eram símbolos de seu poder e status). Se 1 Samuel 18:1-4 fosse sobre o primeiro encontro de Jonatas com uma mulher, teólogos em toda parte escreveriam sobre isso como uma das maiores histórias de amor de todos os tempos. A história de Jonatas e seu amor seria fonte de dezenas de filmes de Hollywood. Mas porque o objeto de sua afeição era um homem, nosso preconceito cultural nos chuta, e insistimos (não obstante a evidência bíblica), que isto não poderia ter sido mais que uma história de amizade profunda.

Esta leitura "culturalmente correta" não resistirá ao escrutínio. Ela nos pede para colocar uma interpretação sobre a história que entra completamente em desacordo com nossa própria experiência de comportamento humano. Quando foi a última vez que você viu um homem heterossexual, varrido por amor fraternal, oferecer a outro homem suas posses mais preciosas em seu primeiro encontro? Suponha que o pastor da igreja (supondo que ele é um homem), mediante ao cumprimento de um outro homem, pela primeira vez, se despoje de seu terno e entregue-o. Suponha que nesse mesmo encontro, ele também ofereça seus bens mais preciosos, talvez uma bíblia da família, um relógio de pulso com uma inscrição de seus pais, e sua amada caminhonete. Não lhe pareceria um pouco "estranho"? Vamos enfrentá-lo, o autor de 1 Samuel está descrevendo um clássico encontro de amor à primeira vista envolvendo dois homens.

Mas ainda há mais nesta história. O texto continua dizendo que Davi torna-se um poderoso guerreiro, e que sua popularidade com o povo de Israel ameaça o trono de Saul, tanto que ele planejou matá-lo. Mas Jonatas avisa a Davi, e ele foge do palácio antes que Saul pudesse agir. Eventualmente, Jonatas convence seu pai a permitir que Davi volte, mas logo Saul planeja matá-lo novamente. Desta vez, ele não diz a Jonatas (Ele tinha aprendido a lição), mas Davi escapa de qualquer maneira.

Então Jonatas e Davi se reúnem em segredo. Jonatas pedi que Davi volte para o palácio, mas Davi estava com medo por sua vida. Então, eles fazem um plano: Jonatas iria para casa e tentaria descobrir o que seu pai pensava. Se seu pai tivesse arrefecido, Davi estaria seguro. Uma noite, à mesa real, Jonatas traz o nome de Davi a tona. A reação de Saul está no Anexo B. Saul disse a Jonatas:

"Então se acendeu a ira de Saul contra Jonatas, e disse-lhe: Você filho de uma mulher perversa e rebelde! Eu não sei que você escolheu [Davi] o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha da nudez de tua mãe? Porque todos os dias que o filho de Jessé viver sobre a terra, nem você nem seu reino serão firmados". (1 Samuel 20:30-31).

Muitos homossexuais têm experimentado conversas em jantares muito semelhantes a esta. Eles cometem o erro de falar sobre seus amantes na mesa, e seu pai fica furioso. Mais com bastante frequência, a culpa vai para a mãe, que era "muito suave" ou "muito dura", e "perverteu" o filho de alguma forma. Em seguida, o pai vira sua raiva em relação ao filho: "Você não vê que está envergonhando toda sua família? Você não se importa o que isso pode fazer com sua carreira? Você nunca será nada se não desistir dessa loucura!"

No texto bíblico, os argumentos são os mesmos. E, ainda mais significativo, é a referência que Saul faz sobre Jonatas envergonhar a nudez da mãe, o que traz uma conotação sexual. Descobrir a nudez de um membro da família era um eufemismo para o incesto nos códigos de santidade do Velho Testamento, e Saul não teria usado esta frase de ânimo leve. (Ver nota 1). A implicação é que Jonatas está trazendo vergonha sexual para sua família.

Jonatas corre imediatamente da mesa. E, naquela noite, vai dizer a Davi a triste notícia. A narrativa de seu encontro final é cheia de tragédia e amor, Anexo C.

"Davi levantou-se do lado da pilha de pedras, se prostrou com o rosto no chão. Curvou-se três vezes e eles se beijaram e choraram um com o outro; Davi chorou ainda mais. Jonatas disse a Davi: Vai-te em paz, o que nós temos jurados ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja entre mim e ti, e entre os meus descendentes e os seus descendentes, para sempre". (1 Samuel 20:41-42).

Esta seria a última vez que um veria o outro. Davi foi se esconder e Jonatas foi eventualmente morto em uma batalha, ao lado de seu pai. Talvez eles tivessem ideia que era o fim. Eles certamente sabiam que seu amor estava condenado. E Jonatas lembrou a Davi de sua aliança. Ele lembrou-lhe que, mesmo que não pudessem estar juntos, tinham feito uma promessa e sua ligação iria durar por todas as gerações. Todos os seus filhos e netos seriam como uma família, obrigados por seu amor um pelo outro. Mais tarde, depois de assumir o trono, Davi lembra-se deste pacto e adota o único filho de Jonatas como seu próprio, algo completamente inédito em um momento em que se esperava que o rei matasse qualquer pessoa com conexão com o rei anterior. (Ver nota 2).

Então, foi essa história uma amizade meramente profunda ou um relacionamento romântico? No Anexo A, após seu primeiro encontro, Jonatas diz ter amado Davi como sua própria alma e lhe entrega todos os seus bens mais preciosos. No Anexo B, o pai de Jonatas usa a linguagem de sexo e vergonha quando fala da relação entre Jonatas e Davi em um acesso de raiva. No Anexo C, vemos Jonatas apaixonado, com um adeus choroso, lembrando a Davi de sua aliança eterna que fizeram um com o outro. Aliança essa, que Davi homenageia mais tarde, apesar de ser politicamente incorreto. Mas se você ainda não está convencido de que isso era um relacionamento romântico, nem tampouco mais uma evidência bíblica, ou uma arma fulminante, por assim dizer. A história tem um capítulo mais apaixonado.

No primeiro capítulo de 2 Samuel, o autor nos diz que, depois da morte de Saul e Jonatas em uma batalha, Davi rasga as suas roupas e jejua, em sinal de luto profundo. Ele chora e escreve uma canção, e ordena que todos os homens de Judá cantem. Nessa música, ele inclui as seguintes palavras: Anexo D:

"Saul e Jonatas, tão queridos e amados! Na vida e na morte não se separaram; eram mais ligeiros do que as águias, mais fortes do que os leões. Como caíram os valorosos no meio da batalha! Jonatas jaz sobre os seus altos. Angustiado estou por você, meu irmão Jonatas; muito amado foste vós para mim; seu amor foi para mim maravilhoso, mais do que o amor das mulheres!" (2 Samuel 1:23, 26-27).

Aqui está o preto no branco. Davi afirma que o amor que dividia com Jonatas era maior do que o que ele tinha experimentado com as mulheres. Você já ouviu falar sobre um homem heterossexual dizer que amava seu amigo do sexo masculino mais do que sua esposa? Isso vai além de uma amizade profunda entre homens heterossexuais.

Nesta história, temos uma resposta bíblica direta a nossa pergunta: Pode duas pessoas do mesmo sexo viverem um relacionamento amoroso comprometido, com o favor de Deus? A resposta é "sim", pois Jonatas e Davi o fizeram, e a Bíblia celebra seu relacionamento.

O autor não sente necessidade de explicar o amor entre esses dois homens, colocando uma nota dizendo: "isto pode parecer uma história de amor, mas nada aconteceu". Quando o Rei Saul assume que a relação é muito mais do que uma amizade, o autor relata seu comentário, e permite que o leitor entenda. O autor também teria conhecimento de histórias similares no oriente próximo que continha aspectos homoeróticos. (Ver nota 3). Ele tinha conhecimento que sua história seria interpretada por leitores ao longo do tempo, com outras mentalidades, no entanto, não se preocupou em diferenciar o relacionamento de Jonatas e Davi.

Sob inspiração do Espírito Santo, o autor de 1 e 2 Samuel escreveu está linda história de amor e não viu conflito entre ela e as Escrituras anteriores, como Levítico. Como isso é possível? Aparentemente o autor de 1 e 2 Samuel compreendeu a passagem de Levítico da mesma forma que fazemos, vendo-a como uma condenação do sexo cananeu no templo que, portanto, não impedia um relacionamento romântico profundo entre dois homens que amaram e serviram ao Deus de Israel. Se alguém tivesse desafiado o autor de 1 e 2 Samuel, ele poderia muito bem ter respondido: "Este não é o Livro de Levítico para condenar. Você tem que entender o contexto que Levítico foi escrito. Esta é uma situação muito diferente".

Por que não podemos usar o mesmo bom senso hoje em dia? Por que alguns cristãos estão determinados a condenar o que Deus aprovou nas Escrituras?

Lembre-se, Davi não é um herói menor na Bíblia. Ele é chamado de "o homem segundo o coração de Deus" (1 Samuel 13:14). Ele é dos mais queridos reis de Israel. Ele é um dos mais prolíficos escritores da Escritura (escrevendo muitos salmos). Ele está na linhagem de Jesus Cristo. E amava a Jonatas (Ver nota 4).


Nota 1: Levítico 18:6-18 começa: "Você não deve aproximar-se de qualquer parente para descobrir a nudez" e continua a listar todas as possíveis relações incestuosas (exceto os de pai e filha), afirmando diante de cada um: "Você não descobrirá a nudez de...".

Nota 2: A história em que Davi adota o filho de Jonatas, Mefibosete se encontra em 2 Samuel 9. Para exemplo de como alguns outros monarcas lidaram como os potenciais herdeiros dos tronos, veja 2 Reis 10:1-11, 11:1-3 e 13-16.

Nota 3: Nas páginas 20-24 de Homo erotismo no mundo bíblico, Martti Nissinem faz um bom trabalho discutindo a Epopeia de Gilgamesh, que ele diz ser "às vezes considerado a mais importante e antiga representação do Oriente Médio sobre homo erotismo". (Página 20). Nesta história, Gilgamesh é descrito como um meio-deus metade homem, cuja energia e aventuras para o sexo são infinitas. Ele assola jovens homens e mulheres de Uruk, tão incontrolável que o povo de Uruk chama a deusa criadora para criar-lhe um parceiro adequado, para que ele os deixe em paz. A deusa criadora faz um homem ruivo chamado Enkidu, e as aventuras de Gilgamesh e Enkidu compõe o resto do conto. David F. Greenberg também discute a Epopeia de Gilgamesh, juntamente com outros exemplos de relações amorosas entre guerreiros homossexuais do Oriente Médio nas páginas 110-116 do livro "The Construction of Homosexuality", ele afirma: "Paralelos entre a relação de Gilgamesh-Enkidu muitas vezes é vista na história de Davi e Jonatas, e na devoção de Aquiles e Patrocles um pelo outro na Ilíade. Para uma discussão mais aprofundada do épico de Gilgamesh e de como ela poderia ter sido usada pelos escritores bíblicos, veja também Reading the Old Testament (Wadsworth Publishing Company, Belmont, CA, 1999) de Barry L. Bandstra, páginas 76-77.

Nota 4. A Bíblia nos diz que Davi e Jonatas eram casados. (1 Samuel 25:39-42; 2 Samuel 3:14; 4:4; 9:3-7; 11:27). Mas isso não é incompatível com um relacionamento romântico entre eles. Ainda hoje, muitas pessoas homossexuais se casam e tem filhos para se conformar às pressões sociais. Como um príncipe, Jonatas não tinha a escolha de não se casar, pois precisava de um filho para se tornar herdeiro. Davi teria enfrentado pressões semelhantes. Outras histórias bíblicas indicam que Davi foi capaz de sentir desejos por mulheres (2 Samuel 11:2-26). Ele parece ter sido o que hoje chamaríamos de bissexual, alguém que é capaz de formar um relacionamento romântico e profundo com pessoas de ambos os sexos. Por outro lado, com base do que encontramos nas Escrituras, ele parece ter tido um interesse romântico apenas por Jonatas. E, também parece ter sido o que hoje chamaríamos de Gay.

Fonte: wouldjesusdiscriminate.org

terça-feira, 20 de setembro de 2016

TEOLOGIA TRANS DE JESUS CRISTO (PARTE 2)

 
Jesus sobre os três tipos de eunucos
A passagem chave que muitas pessoas trans usam para compreender sua relação com as escrituras é Mateus 19:11-12:
"Mas ele [Jesus] disse-lhes [aos discípulos]: Nem todos podem receber esta palavra, mas apenas aqueles a quem é dado. Porque há eunucos que são assim desde seu nascimento, e há aqueles que foram castrados pelos homens; e há os que se fizeram eunucos por amor do reino dos céus. Aquele que tem ouvido para ouvir, ouça".
Os que já nasceram trans, não têm a opção de ser cisgênero, apenas a opção entre ser abertamente trans, tentando fazer o melhor para ser feliz, ou repreender sua transexualidade, tentando fingir ser cis. Sim, o próprio Jesus afirmou tal questão: "há eunucos que são assim desde seu nascimento..." Sendo esse o caso, a transição é apenas um processo de tornar manifesto o que já faz parte da pessoa desde seu nascimento. Mas, ainda mais tentador é Jesus afirmar que algumas pessoas se fazem eunucos por causa do reino dos céus. Neste caso, a transição pode ser uma resposta apropriada para sua própria participação no reino dos céus, ou para suas tentativas de ser um/uma membro apropriado/apropriada do reino dos céus. Tornando-se um/uma eunuco, não é apenas não-vergonhoso e permitido, mas pode ser uma coisa positiva realizada pela razão certa de ser ativamente agradável a Deus. Pelo menos é o que Jesus diz.

Porém, essa passagem tem rodado de diferentes maneiras por diferentes pessoas. O contexto imediato anterior é uma pergunta dos fariseus sobre casamento e divórcio e dos discípulos perguntando se devem evitar o completamente o casamento. Assim, muitos (especialmente católicos), interpretam isso como uma discussão sobre o celibato dos padres, e, o processo de se tornar "eunuco para o reino de Deus" é muitas vezes entendido ao lado do comentário de Paulo sobre o casamento (1 Coríntios 7). Mas mesmo que este seja um dos entendimentos desta passagem, não existe nenhuma razão para não pensar que Jesus também estivesse falando sobre a natureza e o papel social dos eunucos. É muito difícil ler esta passagem sem pensar nas ideias bíblicas mais amplas do comportamento LGBT. Aqui, Jesus está falando especificamente aos discípulos (não aos fariseus), que tinham se tornado alvos certos da malha do povo, pois viajavam, todos solteiros e, certamente levantavam suspeitas em seu tempo. Nenhum dos discípulos parece ter tido filhos, e, só Pedro é registrado como tendo sido casado (e mesmo esse parece que já estava viúvo quando encontrou com Jesus, e nunca se casou novamente). Mas, mesmo sendo esse um dos tons desta passagem, ela parece mais, ser sobre eunucos reais, em vez de apenas pessoas que possam ser confundidas com eunucos. Não há evidências de nenhum dos discípulos ter sido identificado publicamente como eunuco durante sua vida, apesar de existir registros dos pais da igreja os chamando de eunucos mais tarde. Certamente alguns cristãos também confundiram Jesus com um eunuco. Note também, que o resto de Mateus 19 é sobre a boa vida cristã e sobre um jovem que está sendo tentado a juntar-se ao bando de Jesus, mas decide não fazer para voltar a sua vida normal e familiar. Podemos interpretar está a luz do que vem imediatamente após, tanto a luz do que vem imediatamente antes.
Jesus e o Transportador de Cântaro
Outro conjunto de passagens que revela atitudes de Jesus para com as pessoas trans ou não conformes com seu gênero, é a história do transportador de água, imediatamente antes da Última Ceia, em Mateus 26:17-19; Marcos 14:12-16 e Lucas 22:7-13. Detalharei mais essa história em outra publicação. Para entender a história você precisa muito do fundo cultural. É o dia dos pães ázimo, o dia chave da Páscoa. Esse é o maior feriado judaico do ano, uma época em que todos e todas na Judéia devem visitar Jerusalém, e cada família deve consagrar um cordeiro em sacrifício no Templo, e depois comê-los juntos à noite, em um grande jantar familiar. Neste período, a cidade ficava repleta de pessoas, e todos que podiam, e se preocupavam com a tradição, se reuniam com os familiares. Mas os discípulos não estão com suas famílias, eles estão com Jesus. Eles perguntam ao mestre se estão indo celebrar a Páscoa juntos, e em caso afirmativo, onde e como? (Nesse momento, eles já estão no final de sua jornada). Jesus manda-os ao encontro de "um homem carregando um cântaro de água (Mateus é mais ambíguo). Como eles encontrariam um homem levando um cântaro de água em uma Jerusalém cheia? Não é lá que estão milhares de homens preparando uma festa com seus familiares? Bem, na verdade, não. Na cultura judaica da época, apenas mulheres carregavam cântaros de água. Os homens às vezes carregavam cantinas ou odres, especialmente quando viajavam, mas os grandes jarros de água utilizados para o fornecimento de uma casa com água de poço, era um trabalho extremamente feminino. Qualquer homem que levasse em público cântaros de água, ou era: a) um homem fazendo seu melhor para viver como mulher na sociedade; b) ou não havia nenhuma mulher naquela casa e o homem não se importava de fazer o papel feminino em público. Mas Mateus, usa uma estranha construção para tentar evitar dizer o gênero dessa pessoa (chamando de "um certo alguém", DEINA. Essa é a única vez que essa frase é usada no Novo Testamento), o que, nos faz inclinar-nos para primeira interpretação. 

De qualquer modo, a transportadora (prefiro chamá-la assim) de cântaro leva os discípulos a uma casa onde vive com um "mestre de família", que os acolhe e proporciona-lhes uma sala superior para preparação da Páscoa. Tudo bem, isso foi muito rápido, mas nos aprofundemos. Por que esta casa não está cheia com seus familiares? Talvez nem a Transportadora de cântaro, nem o mestre da casa tenham familiares vivos (exceto, talvez, um ou outro). Ou talvez suas famílias sejam afastadas deles. De qualquer forma, eles não tinham ido jantar com seus familiares, e nem suas famílias vieram ter com eles para a Páscoa. Além disso, Jesus parece saber perfeitamente que o dono da casa irá acolhê-lo, junto com seus 12 discípulos, para uma enorme refeição, mesmo no último minuto. Além disso, Jesus espera que o dono da casa tenha espaço para eles. Jesus sabe que o dono da casa e a Transportadora de cântaro não terão familiares presentes. É provável, que eles tenham sido rejeitados por suas famílias, e por isso, tenham espaço suficiente para Jesus e seus discípulos. Além disso, por que Jesus não os levou para casa de Maria, sua mãe (e de seus irmãos, ou meio irmãos, dependendo de sua interpretação), em vez da casa daquele desconhecido? Jesus escolhe simbolicamente a casa da Transportadora de cântaro e do mestre da casa para dizer que essa é sua verdadeira família, e não Maria e seus irmãos. E, este é o tema que percorre todo o Novo Testamento (incluindo Mateus 19).

Mais uma vez, permita que isso flua em sua mente. Jesus conhece uma pessoa que parece ser homem para alguns escritores, mas, que atua publicamente como mulher, e, conta com essa pessoa para tratá-los como se fossem seus familiares próximos, juntamente com seus discípulos. A Transportadora de cântaro e o mestre de família iam preparar uma festa para dois, mas para ajudar Jesus e seus discípulos, preparam uma festa para quinze em um único dia. Imagine que no natal, você e seu parceiro não são bem-vindos na casa de seus familiares, e que, eles também não estão dispostos a vir à sua casa, talvez por causa de seu estilo de vida incomum. E, em seguida, um pouco antes da refeição, um estudante, mandado por seu mestre diz: Pode treze pessoas almoçar em sua casa, para celebrar o feriado nesta noite? Falando com uma dona de casa trans, acho absolutamente anormal. Mas eles respondem sim, e abrem sua casa com um feito épico de hospitalidade. E em vez de uma refeição para dois em uma casa vazia, agora são parte de uma grande refeição de uma "família escolhida". E, de fato, está refeição torna-se tão famosa que milênios mais tarde, ela é lembrada ritualmente, repetidas vezes por muitas pessoas ao redor do mundo.

Hoje, quando pensamos na atitude cristã adequada daquela pessoa trans, percebemos com toda probabilidade, que uma trans e seu parceiro, alojaram e fizeram parte da última ceia, juntamente com Jesus e seus discípulos. E Jesus não reclamou nem um pouco disso. A maioria das pinturas da Última Ceia, não incluem a Transportadora de cântaro e seu companheiro, mas provavelmente ela estava lá.

Fonte: Estudos do Rev. Cindi Knox (homem trans).

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

TEOLOGIA TRANS (PARTE 1)

 
"Precisamos de um Deus-trans... que transgrida todas as nossas ideias sobre quem é, o que é e o que possa ser Deus, que nos transporte para novas possibilidades de como Deus pode encarnar a multiplicidade das formas das realizações humanas, que transfigure nossas imagens mentais de limitações, que transforme as nossas ideias sobre nossos companheiros seres humanos e sobre nós, que transcenda tudo o que sabemos ou pensamos saber sobre Deus e sobre a humanidade como IMAGO DEI". BK Hipsher

O que os cristãos devem saber sobre as pessoas travestis e transexuais? Que tipo de apoio encontramos nas várias posições da Bíblia? Como as histórias bíblicas podem laçar luz sobre a vida das pessoas trans? Talvez você, que é um/uma ministro/ministra de congregação, que tenha um amigo ou amiga trans, que tenha um filho ou filha trans queira conversar sobre o assunto. Ou talvez você seja uma pessoa trans e quer saber como o cristianismo pode lhe dar apoio. Cremos que as denominações cristãs devam apoiar as transições das pessoas trans, se esse for seu desejo. Mostrarei os principais argumentos cristãos favoráveis a aceitação das pessoas trans e, discutirei também a posição assumida por algumas denominações atualmente.

Minha experiência mostra que as questões teológicas em torno da identidade trans sejam realmente bastante diferentes das reflexões cristãs sobre lésbicas, gays e bissexuais, onde existe uma gama de discussão em diversos lugares. Vemos muitos pastores e pastoras discutirem sobre as questões bíblicas referentes as pessoas LGB, mas quase nenhum/nenhuma está familiarizado/familiarizada com as discussões e passagens bíblicas que dizem respeito a população T. Estamos focando nas pessoas trans, mas existem textos relevantes sobre pessoas não-binárias ou pessoas de gêneros fluidos. Parto do pressuposto que você já esteja familiarizado com os conceitos básicos do que seja pessoas travestis e transexuais, caso não, procure estudar tais conceitos.
ARGUMENTOS A FAVOR DAS IDENTIDADES TRANS
Argumentos do amor cristão em geral, ou inclusão, ou a valorização da diversidade, etc.

Provavelmente os argumentos mais comuns para o apoio cristão às pessoas trans seja o de enxergá-las como exemplo de um princípio mais amplo sobre o amor cristão, ou inclusão, ou uma valorização geral da diversidade. Muitas teologias pregam sobre o valor da criação de Deus. É comum salientar que Jesus intencionalmente interagiu e defendeu uma variedade de tipos de párias sociais: cobradores de impostos, prostitutas, samaritanos, pobres pescadores, leprosos, etc. Da mesma forma pode-se apontar uma injunção bíblica especial para ajudar pessoas que precisavam de ajuda, e as pessoas trans parecem precisar de ajuda em uma variedade de medidas. As Igrejas da Comunidade Metropolitana celebram as identidades trans e colocam tal experiência como parte do confiar na sabedoria de Deus "criatividade diversificada de Deus".
"Nós achamos que reivindicando nossa plena sexualidade nos tornamos um alegre ato da obediência e confiança na sabedoria de nosso Criador. Quando confiamos a expressão de nossa identidade sexual em um relacionamento amoroso e justo, nossa dependência e compromisso com a vontade de Deus é revelada e aprofundada. Se o fizermos, obrigamo-nos a uma busca sincera e continua em um caminho para Deus, nesta área mais íntima e indefesa de nossas vidas. As variedades resultantes de relacionamentos e identidade de gênero, em sua gama complexa, responsável, rica e surpreendente, são um lembrete permanente, que o plano de Deus está além da compreensão humana".
As igrejas que praticam uma comunhão aberta (incluindo muitas denominações protestantes), muitas vezes veem isso como uma extensão de um dever da igreja de ministrar a todas pessoas que estão dispostas a ser ministradas, mesmo os pecadores e, mesmo desaprovando as pessoas travestis e transexuais, consideram um dever cristão apoiá-las de várias maneiras. Existem muitas maneiras de obter argumentos para se trabalhar desta forma, e, até mesmo as tradições que se opõem as identidades trans em alguns aspectos, precisam dos outros para apoiá-los, a fim de serem coerentes com seu próprio entendimento da mensagem de Cristo.
Os "eunucos", foram parte integrante da sociedade nos tempos bíblicos, e não foram rejeitados nem pelos judeus, nem pelos cristãos
Por que devemos esperar que a Bíblia fale sobre as pessoas travestis e transexuais em todo seu contexto? Todos os dois termos são recentes, certo? Cirurgias de redesignação sexual e terapia de reposição hormonal moderna foram desenvolvidas por volta do século 20. Ser travesti ou transexual é uma coisa bastante recente, certo? Não. Nem um pouco. Nosso pensamento atual sobre travestis e transexuais e nossas técnicas médicas para auxiliar a transição são ambas muito recentes, mas as pessoas trans deram o melhor de si para viverem sua vida, em praticamente todas as culturas, presente em toda história registrada. Olhe isto deste modo, a palavra "homossexual", foi cunhada em 1896, nossa forma atual de pensar sobre homossexualidade é bastante recente, mas existiram pessoas que hoje teriam sido chamadas de homossexuais em cada cultura há milênios, porém, elas foram categorizadas de outras maneiras anteriormente. Isso é tão verdadeiro para as identidades de gênero, como é para as sexualidades homo e bi.

Ambas são registradas na Bíblia, mas, com o nome de "saris" (pl. Sarissim), em hebraico e aramaico, e "eunouchos", em grego, geralmente traduzida para "eunuco" em português. Mas "eunuco" no hebraico, aramaico, grego e na cultura romana não tinha exatamente o mesmo significado que tem no português. Por exemplo, não implicava ou exigia que a pessoa fosse castrada. Pessoas castradas são um dos vários tipos de eunucos, no latim, grego, hebraico e aramaico, uma pessoa pode ser castrada sem ser saris, ou ser uma saris sem ser castrada. Deuteronômio 23:1 usa termos diferentes para falar sobre as pessoas castradas e as com testículos esmagados. Eunouchos e saris são ambas grandes categorias projetadas para incluir lotes de diferentes tipos de pessoas que não são homens ou ex-homens, nem exatamente femininos também. Alguém nascido intersex, ou nascido do sexo masculino, mas que vivia publicamente fora das normas de masculinidade, ou alguém que queria concentrar sua vida a serviço de um rei em vez de criar uma família, ou mesmo alguém que fosse castrado, ou ainda alguém feito para viver uma vida de um terceiro sexo fazia parte desse código de eunucos do mundo antigo. Um homem que se encontrava infértil ou impotente, ou apenas impotente para com as mulheres, podia ser identificado como eunuco pelos outros, e tanto podiam concordar que eram, como podiam negar, e afirmar que eram do sexo masculino, apesar disso. Eunucos frequentemente usavam roupas do sexo feminino, ou, nas versões femininas, roupas masculinas. Eunucos eram casados. Sarissim, em particular, era associado fortemente ao serviço oficial dos palácios, e não tinham filhos. Na cultura greco-romana um homem que preferia dormir com homens, mas que se encontrava disposto e capaz a se casar e dormir com mulheres e ter filhos, era considerado dentro dos limites da normalidade, um homem que não estava disposto ou mesmo fosse incapaz de se casar com mulheres ou ser pai, era considerado um eunuco, e não um homem. É possível que os sarissim fossem trabalhados desta forma também. Uma série de estudiosos acreditam que muitas pessoas que hoje são consideradas gay, teriam sido codificadas como eunucos no antigo Israel. Romanos e Gregos descreviam eunucos como "um terceiro gênero do ser humano", como "terceiro sexo", e como "gênero do meio".

Saris e eunouchos também foram usados para traduzir identidades desconhecidas de gênero em outras culturas próximas, dos quais haviam muitos. Potifar, egípcio, (proprietário de José em Gênesis 39), era um e, provavelmente um "Sequet" (terceiro gênero, além de masculino e feminino no antigo entendimento egípcio). Mas, isso é traduzido como saris em hebraico. A erudição moderna ainda está lutando para entender o sentido de uma gama de identidades não-padrão de gênero entre os sumérios, acádios, assírios e babilônicos como "aqueles que estão diante do rei", "a terceira categoria de pessoas", ur-sal, ou Kur-ga-ra, sag-ur-sag, assinu, keleb, kulu'u, sinnisanu, entre outras. Parece que essas pessoas faziam distinção entre os ricos dos palácios e os servos de gênero queer, prostitutos sagrados, gênero fluido, homens que viviam com mulheres, homens-mulheres, homossexuais efeminados, e muitos outros. O que está nítido é que haviam muitas possibilidades de identidades de gênero não-padrão na Mesopotâmia, mas o único termo em hebraico que traduz tudo isso é saris (e ay'loint, do aramaico pode preservar algumas das distinções assírias. E temos m'hay-min, gwar-Ni-SHA-ya entre outras, para além da forma de saris). A Frígia (Phyrigians) teve os Galli, que continuou e se espalhou após sua queda, alguns dos entendimentos de gênero Galli se espalharam e provavelmente influenciaram os entendimentos mais Helênicos de Hermafrodita (Hermaphroditus), andróginos e eunucos.

Tudo bem, mas o ponto é que sarissim e eunucos são frequentemente mencionados na Bíblia, e são aceitos, de modo geral, sem comentário, hostilidades ou oposição. A Bíblia não contém condenações para eunucos, ou apelos para não deixar suas crianças virarem eunucos quando crescerem, ou dar a entender que ser eunuco era um castigo de Deus ou uma rebelião contra o plano dele. Muitos eunucos podem ter sido excluídos da casa do Senhor, mas em uma passagem mais adiante, em Isaías 56:4-5 diz: "Porque assim diz o Senhor a respeito dos eunucos, que guardam meus sábados, que escolhem coisas que me agradam e abraçam minha aliança: Darei na minha casa, dentro de meus muros, um lugar e um nome, melhor do que filhos e filhas; darei um nome eterno que nunca será apagado". Talvez Isaías tente rever e atualizar Deuteronômio, mas também é possível que os eunucos tenham um papel liminar entre os antigos hebreus, onde eram excluídos da casa de Deus, mas ainda considerados de alguma forma valiosos como membros da comunidade. A Bíblia tem muitos exemplos de eunucos que são retratados de forma basicamente favoráveis, Potifer, Aspenaz, Ebede-Meleque, um funcionário etíope sem nome que interage com Filipe, etc.

É importante ressaltar que não há registro nem de Jesus, nem dos discípulos tentando curar um eunuco. Por que não? Leprosos também eram excluídos, e um dos principais objetivos de Jesus era o de cura, incluindo os leprosos. (Marcos 1:40-45; Mateus 8:2-4; Lucas 5:12-16). Então, por que Jesus não curou eunucos castrados também, e os restaurou para sua casa? Bem, uma razão é uma citação que veremos mais à frente, outra razão possível é que simplesmente Jesus não via eunucos como tendo necessidades de cura, não tem nada de errado com eles, não são impuros, especialmente se a pessoa escolheu esse caminho. Os eunucos não vinham para cima dele pedindo cura, mesmo quando ele se tornou famoso por suas curas milagrosas.

Hoje, a maioria das pessoas trans no Brasil não se veem como eunucos, elas pensam em si mesmas como homens ou mulheres. Alguns de nós, se consideram não-binários ou gênero fluído, terceiro sexo ou algo assim. Em nossos tempos, alguém poderia imaginar como era ser uma mulher trans presa no mundo antigo, sem acesso a bloqueadores de testosterona, estrogênio ou mesmo a vaginoplastia moderna? Talvez o esmagamento ou remoção dos testículos e até mesmo remoção do pênis seria a forma de eliminar a produção de testosterona, e, talvez a forma de lhe dar com sua transexualidade. Em sentido real, era a melhor maneira que se tinha na tecnologia da época. Muitas pessoas que hoje são mulheres trans, provavelmente teriam sido eunucos nos tempos bíblicos. O importante é olhar firme para os eunucos mostrados nos tempos bíblicos e pensar sobre identidade de gênero das pessoas mais vulneráveis e, sobre a distante transição entre o nascimento e sua identidade. A Bíblia pode não ser capaz de ajudar com questões chaves, com a eficácia que nossa tecnologia atual ajuda em uma transição, mas, pelo menos, mostra nitidamente a atitude de que não há nada de vergonhoso, impuro ou contrário aos planos e metas de Deus se afastar do sexo atribuído ao nascer.

Continua...

Fonte: Estudos do Rev. Cindi Knox (homem trans). 

sábado, 10 de setembro de 2016

DIALÉTICA DA RECONCILIAÇÃO


Paulo foi um ótimo professor dialético. A palavra dialética originalmente se referia a arte grega do debate. A dialética (diferente de nossos debates políticos) não se move nas duas maneiras de si pensar. É quando você joga dois pensamentos fora, e, em seguida, chega a um tertium quid, uma terceira coisa, o que as tradições de sabedoria interior chamam de "Terceira Força". É o processo de superação de aparentes opostos, descobrindo uma terceira reconciliação, que é maior que ambas as partes, e, que não exclui qualquer uma delas. Essa verdade move sua conversa a um nível diferente. Pessoas Sábias geralmente ensinam de uma forma dialética, pois conhecem a experiência interior, invariavelmente julgadas por imenso sofrimento, não por autoridades externas. Pense em Madre Teresa, Nelson Mandela, Mahatma Gandhi.

Paulo joga fora aparentes contradições ideológicas como carne e espírito, lei e liberdade, macho e fêmea, retendo ambos, não eliminando nenhum dos dois, até chegar à conciliação terceira, ou um ótimo e espaçoso lugar chamado de misericórdia ou graça, que resulta em uma "Nova Criação", (Gálatas 6:15). Mas a maioria tenta entender Paulo no nível dos binários iniciais que ele apresenta, interpretando um como totalmente bom e outro como totalmente ruim. Infelizmente é por isso que muitas pessoas não gostam de Paulo.

Cynthia Bourgeault. Professora do Center for Action and Contemplation, explica a nuance da Terceira Força:
A interação de duas polaridades suscita uma terceira, que é a "mediação" ou princípio "reconciliador" entre elas. Em contraste com um sistema binário, que encontra estabilidade no equilíbrio dos opostos, o sistema ternário estipula uma terceira força que emerge como a mediação necessária desses opostos e que, por sua vez (e este é o ponto realmente crucial) gera uma síntese em um nível totalmente novo. É uma dialética cuja resolução cria simultaneamente um novo reino de possibilidades.
[Por exemplo] como disse Jesus: "a menos que [a semente] caia na terra e morra, [ela] continuará a ser uma única semente" (João 12:24). Se esta semente cai no chão, ela entra em um processo sagrado de transformação. Veja, a primeira força, o chão "afirma", a segunda força, "nega" (O terreno tem que ser úmido, a água sendo seu primeiro componente mais crítico). Mas, mesmo neste encontro, nada acontecerá até a luz solar, a terceira força ou "reconciliação", entrar na equação. Em seguida, as três forças que geram o broto, realizam a possibilidade latente na semente, e, surge um novo "campo" conjunto de possibilidades.

Bourgeault vê a terceira força na ação de Jesus ante à situação da mulher apanhada em adultério. Quando apresentada com as polaridades de libertação ou apedrejamento da mulher, Jesus diz: "Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que atire a pedra" (João 8:7). Escreve ela: "Ele acha a coisa que transforma os dois terríveis binários em um completamente novo relacionamento, e cria um novo reino... chamado de compaixão, perdão. Continua:

A manifestação do amor está na situação, mas você precisa encontrá-la... A terceira força está lá porque a Trindade é real, e, se você estiver alerta, será capaz de encontrá-la... O problema é que a maior parte do mundo é cego para a terceira força... A capacidade de gerar a terceira força ou a santa reconciliação é para mim o mais poderoso fruto de uma prática espiritual contemplativa. Sem uma prática contemplativa, enxergar a terceira força é praticamente impossível... mas com uma prática espiritual, você será melhor e bem mais equipado para entrar na dança e permitir apresentar a terceira força em qualquer situação.

Texto de Richard Rohr's.